segunda-feira, 16 de maio de 2011

Eu estarei por perto.


“Minha querida Anne,

Provavelmente você estará lendo essa carta tarde demais, com as letras borradas pela umidade e com o atraso imenso do carteiro sem paciência para entregar-lhe minhas palavras.

Venho através dessa carta pedir-te desculpas. Pedir-te desculpas por não ter sido um bom marido, um bom pai, um bom irmão, um bom filho, um bom amigo, um bom companheiro, um bom amor. Falhei com você inúmeras vezes, confesso até mesmo que fui bastante grosso em algumas delas. Permita-me dizer que não foi a minha intenção, a não ser nos momentos de imenso carinho e paz que tivemos juntos. Pedir-te desculpas por não te ter feito a mulher mais feliz, apesar de garantir com absoluta certeza de que eu fui o homem mais completo desse mundo.

Oh, Anne, minha querida Anne. Você é de uma singularidade imensa, possui um tom rude e delicado atemporal que sempre me deixou fascinado. Seus grandes olhos me chamavam como duas jabuticabas brilhantes à luz da lua pedindo para serem beijadas. Os teus lábios tão rosados, às vezes vermelhos, carnudos, mordidos por teus dentes tão brancos que sempre me atraíam como se possuíssem certo tipo de magnetismo. O teu corpo fielmente modelado ao teu vestido, coberto por essa carne branca de cheiro único que me chamava tão ardentemente quanto um fogo queima uma pequena folha de papel.

Enquanto eu estou aqui, Anne, relembro todos os dias em minha mente os momentos que tivemos. As vezes em que nos sentamos na varanda e observamos a lua se movimentar, as vezes em que sentimos o sol escaldante cobrir nossa pele com sua formosura, formosura essa que eu não gostava tanto, mas suportava apenas pelo fato de te ver banhada por aquele brilho dourado tão intenso. As vezes em que você se punha a tocar teu violão enquanto eu dedilhava meus dedos pelo piano, dedos esses que contornavam lentamente a tua pele totalmente arrepiada pelo meu toque, toque esse que eu caprichava tanto que nem uma flor ao desabrochar aparentaria tanta delicadeza. As vezes em que nós brincávamos de sussurrar coisinhas um no ouvido do outro, enquanto, no frio, nossos corpos se aqueciam e os batimentos do teu coração se tornava os batimentos do meu.

Memórias essas que passam com tamanha perfeição em minha imaginação que são como sonhos: quando “acordo”, caio em mim que nem ao menos dormi. Memórias que eu guardo em um lugar escondido, só nosso, onde ali se faz presente cada detalhe possível que consegui memorizar. Memórias, minhas únicas companheiras nesses dias de tamanho sofrimento. Não posso afirmar-lhe que caso eu voltasse no tempo faria tudo diferente. Creio que lá, no passado, não teria noção da imensa importância que você tinha e tem pra mim até hoje, e por conseqüência faria tudo do mesmo modo outra vez.

Quero oferecer-lhe meu pedido de perdão que mesmo enviado por uma carta é de tamanha sinceridade que eu não poderia descrever aqui, pois palavras são insuficientes. Perdão por não ter me despedido de você da forma como deveria, se é que existe alguma forma pré-determinada para fins. Perdão por ter te trocado pela minha pátria, aquela que você sempre julgou mal, mas sempre a confiou o seu marido para ilimitadas batalhas.

Perdão por não poder voltar pra casa. E, principalmente, perdão por deixar essa carta tão incompleta. Eu poderia passar horas, dias e meses escrevendo pra você, mas, minha querida Anne, sinto que hei de partir. Não partir para longe, mas partir para outro plano. Um plano que eu espero que seja tão confortável quanto era deitar com você na relva e sentir o cheiro agradável do teu cabelo.

Eu não poderia deixar o meu último resquício sem dizer que eu amo você. Com todas as minhas forças, que agora já são poucas. Amo tanto você que além de vir me desculpar, venho lhe agradecer por ter dito “sim” quando o padre perguntou se você gostaria de passar o resto da sua vida ao lado desse barbudo e magrelo homem que tinha dever com seu país.

Bem, infelizmente eu não cumpri o papel de viver ao teu lado o resto da sua vida. Mas saiba que toda a minha vida só valeu cada minuto à pena por tua causa, minha Anne.”

domingo, 27 de março de 2011

Des(abafo).


Olha só
Que cara estranho que chegou
Parece não achar lugar
No corpo em que Deus lhe encarnou

Essa despersonalização que me foi encarregada tem me saturado. Sensação de que não pertenço a esse corpo, à essa gente, à essa mente. A esse mundo. Nada se encaixa, nada se adapta, eu grito socorro e entendem o contrário. Tento falar a minha língua, mas me obrigam a colocar a máscara da sociabilidade novamente. Não nasci para esse povo, talvez eu não tenha nascido para ser eu mesma. Eu estou me perdendo demais imaginando que todos se escondem atrás de facetas inibindo o medo e o sofrer que lhe afligem internamente ou isso só acontece comigo?

Tropeça a cada quarteirão
Não mede a força que já tem
Exibe à frente o coração
Que não divide com ninguém

Acho que já vem de mim essa mania de controlar os passos, as palavras, as pessoas, os pensamentos. Pensamentos esses que voam livremente e me causam dores de cabeça por não conseguir deixá-los em seus devidos lugares, quietos.

Turbilhão de idéias, dificuldade em me expressar. Menosprezo-me e insisto em não acreditar quando dizem que eu estou errada. Já parei de expor os meus defeitos para não me considerarem a coitadinha – coisa que eu também acho patética -, mas eu só preciso de alguém que me aflore o lado bom e esfregue na minha cara que eu não estou me tornando o que eu não quero ser. Mas talvez eu esteja E eu não quero precisar de alguém. Desinteresse.

Tem tudo sempre às suas mãos
Mas leva a cruz um pouco além
Talhando feito um artesão
A imagem de um rapaz de bem

E olha que eu ainda insisto em melhorar. Não para mim, para eles. Digo que já não sou mais a mesma, que já fui melhor. Que viver na espontaneidade e ignorância de ontem era melhor do que estar nesse patético e repetitivo clichê de hoje. E nessa minha paranóia eu gosto de estar com a razão. Razão nos leva ao lado racional, que vai de embate com o lado emocional. E eu fico nesses conflitos internos de “será que eu vou ser mais uma velha-gorda-sozinha com sete gatos lendo na cadeira de balanço?”. Bullshit. Eu não me deixo levar por nada, não me deixo levar por ninguém. Faço por merecer essa solidão. Descaso.

Olha ali
Quem tá pedindo aprovação
Não sabe nem para onde ir
Se alguém não aponta a direção

Criaram-me para ser uma dependente e hoje querem que eu aja como adulta. Não. Eu ainda preciso de instruções. Essa capa fria e autossuficiente que você está vendo? Se desfalece e se remonta a cada dia que passa, mas os outros estão cegos demais... digo, ocupados demais para notarem algo além da sua própria sombra e achá-la perfeita o suficiente para julgar a alheia. E olha que eu ainda tento ver a diversão que me prometeram tanto nessa tal fase da vida. Desprezo. Se na próxima piora, desejo não viver até lá.

Periga nunca se encontrar
Será que ele vai perceber?
Que foge sempre do lugar
Deixando o ódio se esconder

Onde estão meus sonhos? Meus objetivos? Minhas determinações, meus desejos? Ou eu nunca tive nada disso? Ou o pessimismo sempre reinou dizendo que qualquer tentativa iria ser falha? Que qualquer próximo passo me levaria ao anterior? Quem foi que colocou isso de imaginar sempre o pior das situações e das pessoas em mim? Será que isso é um mal que piora tudo e que viver na hipocrisia que é o otimismo nos leva à felicidade? E essa tal de felicidade, existe? Será que nós já não estamos todos predestinados a viver na tristeza e a felicidade, sim, é que aparece raramente para nos visitar? Eu sou uma acomodada. Despreparada. E não me envergonho disso, no final.

Talvez se nunca mais tentar
Viver o cara de tevê
Que vence a briga sem suar
E ganha aplausos sem querer

Na escola te forçam a engolir matérias. Dentro de casa, obrigações. No ciclo de amigos, regras e modismos. Família é um termo ainda usado, mas não passa de um termo. Individualismo e egoísmo – os males do século. E a maioria é um produto da industrialização, uma massa facilmente destinada a fazer o que eles querem.

Eles? Quem são eles? Eu já não sei mais o que eu falo e já perdi a razão há um bom tempo. Razão, razão...

Faz parte desse jogo
Dizer ao mundo todo
Que só conhece o seu quinhão ruim

É simples desse jeito
Quando se encolhe o peito
E finge não haver competição

É a solução de quem não quer
Perder aquilo que já tem
E fecha a mão pro que há de vir

E eu tenho duas alternativas: ou eu sou uma pessoa com o instinto de afastar as outras pessoas ou eu simplesmente não consigo me expressar e mostrar que o que eu quero de fato é me aproximar. Mas as pessoas não melhoram e insistem em parar no ponto em que acharam confortável. O mundo evoluiu e eles ficaram para trás. Talvez eles sejam bem mais felizes assim e essa mente já cansada por ter avançado tão rapidamente vários anos devesse parar de reclamar. Reclamar, reclamar. Acomodação e procrastinação me fizeram isso aqui, que reclama, mas não tem disposição, interesse, coragem e muito menos paciência para correr atrás do que quer. Covardia. Será que eu nasci para ser eu mesma? Olha só que cara estranho que chegou...

sábado, 12 de março de 2011

Palavras perdidas em meio ao silêncio.


Você. Eu. Uma cama. Suor. Sexo. Ofegar. Piscar de olhos. Carícias. Por que essas perguntas no teu olhar? Sua mão contornando as curvas do meu corpo e provocando arrepios de uma brisa fria. Desvio. Oscilação. Receio. Medo. Encolher. Reprimir. Casulo. Refúgio. Válvula. Esconderijo. Proteção. Capa. Você leva a sua mão lentamente ao meu cabelo, aproxima o seu corpo do meu. O seu sexo no meu. “O que é que acontece?”, você pergunta. “Eu não sei”, minha resposta prática e simples. Clichê. Dificuldade em se expressar. Não saber o que falar. O que sentir. O que deveríamos fazer pra sermos considerados normais?

Levanto-me. Vazio. Pés no chão. Cansaço. Eu poderia desmaiar. Drama. Não. Melhor evitar. Vou até a lareira. Agacho-me, encolho-me, esquento-me. Espero-te. Você se aproxima, se senta do meu lado e deixa o silêncio permanecer. Esse silêncio que não diz nada, mas diz tudo. Cortante, dilacerante, perfura a garganta e insiste em sair. Mas nenhum dos dois quer consumar o ato.

Uma lágrima. Mais outra. Lágrimas de amor. Dor. Horror. Rotina. Cansaço. Eu havia lhe dito para não entrar nessa. Nessa de se afundar comigo. Fossa. Eu lhe avisei que eu preciso de alguém para me acompanhar. Alguém que se arrisque. Segurança. Coragem. Entregar-se. Você retira uma mecha do meu cabelo da minha lágrima. Respira fundo. “O que é que eu faço com você, mulher?”, você já deveria saber a resposta. “Eu não sei”. Você se deita no chão. Essa situação não te preocupa? Eu me enterro e você não move um dedo para me segurar. Deito-me ao seu lado. Esses momentos poderiam durar para sempre.

Instabilidade. Introversão. Ingenuidade. In. Imbecil. “Eu acho que já é hora”, será que você percebeu? Finalmente percebeu que já é hora? Tarda. Tarda, mas não falha. Meus olhos vão de encontro aos seus. Tento conter a vermelhidão na pupila e na bochecha. Mais outra lágrima quente e salgada desce. Transparente, pequena, invisível. Você, como sempre, não nota. Veste o seu casaco, coloca a sua calça. Vejo você ajustar o seu sexo por dentro da roupa sem cueca. Objeto. Eu não deveria deixar isso acontecer mais. Não irá. Eu sei. Já é hora. Tarda. Mas não falha.

Levanto-me, recomponho-me. Te levo até a porta, porque não? Gentileza. Nunca foi usado aqui. A chama da lareira se apaga. Tic-tac, tic-tac. Nesse silêncio que borbulha em nossas mentes o tic-tac do relógio só se intensifica. Você para em frente a mim e não precisa dizer mais nada. Ameaço fechar a porta e você encosta a sua mão levemente. Meu frágil coração bate mais forte pensando ser a última possibilidade, a possibilidade de reatar tudo o que nós queimamos juntos nesses dias surrados pelo silêncio. Sua mão se estende até a minha nuca, você sela os meus lábios e volta a me olhar. Agora com um pouco de sinceridade. Mas eu conheço essa tua mentira. “Eu te amo”, você diz. Tento não me deixar levar. “Adeus”, reconforto o meu coração, na intenção de destroçar o seu.

Intenções. Nenhum de nós queria que terminasse aqui. Terminou. Faltou a entrega. Adeus.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O temido som uníssono da morte.


Eu estava perdendo-a e não apenas fisicamente. De um modo mais profundo, do modo mais doloroso que uma pessoa pode perder alguém.

Deitado no sofá-cama, tento dormir ao menos um pouco e não consigo. Ouço alguns gemidos vindos do corredor de outros pacientes e tento me concentrar no dia de amanhã, o tão esperado dia em que minha amada irá fazer a preciosa cirurgia. É angustiante saber que a vida de uma pessoa está em risco e que você não pode fazer nada a respeito. Que você não pode afirmar a certeza de uma nova vida, que você não pode nem sequer dizer “vai ficar tudo bem”. Era o que eu costumava dizer a ela em momentos difíceis.

Sempre fomos o escape um do outro, “a tábua de salvação, o parapeito que evitava o abismo”. Nunca fui um cara otimista e dessa vez, mesmo sabendo que ela não terá muitas forças para sobreviver, ainda tenho a esperança de que ela possa continuar viva e continuar sendo a minha razão para continuar nesse mundo.

Cinco e quarenta e sete, ouço a respiração dela aumentar e me levanto de prontidão. Posso ver um certo clarão no céu, o vento gélido entra pela janela e me arrepia por inteiro. A minha imensa preocupação e os pensamentos perturbadores de como irei viver sem essa mulher não me deixam dormir. Ela abre lentamente os olhos, olha para os dois lados e eu me aproximo dela, pegando em sua mão frágil e pequena. Sempre tão vulnerável, singela.

— Eu preciso te pedir uma coisa. – finalmente ela disse. Sua voz saiu rouca, como um sussurro, algo praguejado sem qualquer preocupação. Ela parecia conformada.
— Diga, meu amor. – respirei fundo e tentei com todas as minhas forças que adquiri junto a ela com o tempo não chorar. Eu não permitia esse tipo de coisa. Não na frente dela.
— Promete que vai ficar bem? Que irá se cuidar caso eu não esteja aqui? – despejou as palavras que eu temia. Eu tentava adaptar esse sentimento de conformismo no meu coração, mas eu não podia. Algo em mim queria, implorava para que ela ficasse aqui comigo, para poder montar a família que ela sempre queria, para eu poder chegar do trabalho cansado e abraça-la com ternura, sussurrando em seu ouvido que a amo.
— Prometo, meu amor. Eu prometo sim. – eu disse, com certa hesitação. Mas no fundo eu estava ciente de que não podia. Por mais que minha mente dissesse que ainda havia esperanças, meu coração sussurrava numa voz atormentadora que eu não conseguiria suportar sua ausência.
— Eu te amo. – soltou esses três suspiros no ar. Respirou fundo. Uma lágrima caiu do seu rosto. Abaixei-me lentamente e dei um beijo em sua bochecha fria, pálida e sem vida.
— Eu te amo também. Muito. – soltei, agora sem pensar. Ela já estava em completa ciência disso, mas eu nunca me cansei de repetir. Nunca me cansei de ver o sorriso estampado em seu rosto ou seus braços abertos esperando um abraço meu logo após a minha frase.

Dói-me vê-la assim, e tentar sobreviver sem seu apoio seria me superestimar demais. Eu me acostumei, me acomodei e me tornei um eterno dependente dela. Ela se tornou uma parte de mim. Até que ela abriu sua boca para respirar. Eu notei que algo estava errado e fui direto à porta, apertando o botão onde chama-se os enfermeiros e médicos. Pressionei-o desesperadamente, virei meu rosto a ela e meu coração, por míseros segundos, parou. Seus olhos reviraram, sua boa continuou aberta e suas mãos, que pareciam estarem apertadas contra elas mesmas, agora relaxavam. Os médicos me empurraram e entraram abruptamente no quarto...

Ouvi o temido barulho uníssono da morte.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O quão profundo é o seu amor?


Eu e ele, quase sozinhos num bar. Garrafas de vinho em nossa frente, copos afastados e dispensados, uma música calma e melódica tocando ao fundo. Um clima intenso, dois corpos quentes, risos altos. Estranha a forma como ele me faz bem com um singelo olhar ou um simples sorriso de canto. Como o vinho age de uma forma estranha no meu corpo quando ele está perto, fazendo-me querer estar com o meu corpo mais próximo possível ao dele.

Eu não o conhecia há tanto tempo. Lembro-me de ter encontrado esse rapaz moreno e com os cabelos negros, olhos castanhos e provocantes, boca volumosa e bem desenhada, traços do rosto fortes e com uma altura invejável de qualquer rapaz, por aqui, no bar. Nunca tive uma vida saudável, sempre preferi viver no meu limite e provar para mim mesma de que amor é só uma desculpa das pessoas para se auto-satisfazerem com a companhia de outra. Eu pensei que estava certa até conhecê-lo.

Saímos algumas vezes, conversamos bastante, nos divertimos muito, mas nada além de amizade. Algo que me intrigava, até porque para mim é muito raro encontrar um homem que seja tão atencioso com você e não esteja afim de favores sexuais. Ele é bem arranjado, tem um emprego razoável, mora em uma casa que dá pro gasto e sobrevive de miojo e omelete. Estávamos sentados um de frente pro outro, num desses bancos de um bar qualquer que me fazem ficar com medo de cair, ainda mais com o efeito do álcool no meu sangue.

— Tô afim de te dizer uma coisa há muito tempo, Julie. – ele me olhou, meu coração bateu mais rápido, minhas pernas bambearam e – não sei se ele notou – me segurei na bancada para não cair dali. O encarei. Seus olhos estavam meio caídos, meio com sono, sua face era de alguém não muito interessado no horário ou no quanto ambos já beberam.
— Diz aí, poxa, vai ficar enrolando? – tentei não mostrar fraqueza e dei um leve tapa em seu braço, podendo perceber que sim, ele tinha músculos. Sorri, coloquei a mecha de cabelo atrás da orelha.
— Não é lá algo fácil de se dizer, mas espero que não me interprete mal. – ele abaixou a cabeça, sorriu e voltou a me olhar. Com um olhar mais intenso e gritante agora, pedindo por algo que eu não estava disposta a dar. Senti medo. — Bom, Julie, já tem um tempo que nós estamos saindo e eu quero te dizer que... – ele parou. Pegou na barra do meu banco, me puxou para mais perto e deixou seu rosto a centímetros do meu. Encarou-me. Eu podia sentir seu hálito de vinho misturado com menta e cigarro. Segurei-me novamente, mas dessa vez para não beijá-lo. — Julie, você já se apaixonou, certo? Já sentiu alguma vez suas pernas tremendo, sua barriga com um frio esquisito, seus olhos com um brilho intenso, seus risos mais e mais altos provocados por essa pessoa, sim? Eu acho que é isso o que acontece nesse exato momento. Não sei se é o vinho ou se é algum tipo de sensibilidade me afetando, mas eu tenho para mim que estou te amando da forma mais verdadeira possível.

Gelei. Se encostassem uma panela quente em mim naquela hora, provavelmente ela ficaria mais fria. Senti um pingo de suor percorrer a minha testa enquanto eu encarava o chão pensando em algo sensato para dizer. Eu tenho medo. Ele me faz tão bem e ainda diz isso? Talvez eu esteja no mesmo barco com ele. Mas e o receio de me entregar? De descobrir que na verdade nós não iríamos dar certo? Tomei coragem. Engoli seco. O encarei com os olhos arregalados.

— Na verdade eu nunca senti. Nunca. Mas talvez...
— Shhh. – ele levou seu dedo indicador em minha boca e interrompeu a minha fala. Apenas se levantou, estendeu a mão e me ofereceu uma dança.

Levei minha mão tremula até a dele, me deixei ser guiada pelos meus instintos e comecei a dançar Bee Gees, How Deep Is Your Love de uma forma que nem eu sabia que dançava. Talvez era ele me induzindo, nessa mania de ter uma perfeição inexplicável que ele tem. Talvez seja o efeito do vinho sobre os nossos corpos. Talvez seja a minha total entrega nem que seja apenas nesses eternos minutos em seus braços, sem medo de me machucar ou de ter a minha confiança ou ego feridos. Talvez, talvezes. A minha única certeza, nesse momento, é que eu não queria que nada disso terminasse. Que ele me tomasse sempre em seus braços e mostrasse para mim que a única coisa que eu tenho que ter medo é de dirigirmos bêbados ou de perdermos as nossas memórias pela quantidade de álcool que tomamos.

Mas nada, nada disso importa mais. Não se nós estivermos um com o outro.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Pense nos ossos, pressione mais fundo.


Ela tem que parar de comer, ela tem que parar de comer. Gorda. Baleia. E ainda insiste em dirigir a palavra à mãe. Eles não sabem o que dizem. Falam que o peso ideal para ela é, no mínimo, 50. Eu quero 32, só para início de conversa. Ela sabe que precisa de mim. Eu sou a única amiga, a única que demonstra o mínimo de afeto por ela. Já perdeu amigos, pais, anos de escola, carisma. Perder mais alguns quilos não a faria mal. E é aí que ela me chama.

— Ana... Ana? Você está aí? – eu não sei como ainda agüento essa voz irritante. Apareço. Ela me vê como uma garota loira, de 15 anos assim como ela, com a bochecha rosada e sem nenhum defeito, sem um pingo de gordura.
— O que é? Quer vomitar? Eu estou aqui. – falo com uma voz enfadonha. Confesso que às vezes me canso de ficar tendo que carregá-la ao banheiro e segurar sua cabeça para não ir junto com o vômito.
— Eu conversei com minha mãe. Estou disposta a fazer um tratamento intensivo para terminar com isso tudo. O que você acha? – ela disse. Engoli seco, respirei fundo e me segurei para não dar um tapa em sua cara.
— Por que pensas em fazer isso? Eu não estou te fazendo bem? Você não está gostando do seu progresso – apesar de sempre dar uma escapada e comer todos aqueles doces que eu disse para não comer? – curta, direta e grossa. Parece que só assim ela me escuta.
— Mas, Ana, eu quero melhor...
— Não quer melhorar. Você é uma gorda. Olhe para o espelho, Janet, veja como sua face está. – pego um espelho qualquer e a mostro. Ela vê um rosto arredondado e cheio de imperfeições. Eu vejo apenas ossos. É assim que eu gosto.
— Pare, pare, pare, por favor! – ela se segurou para não gritar mais alto. Tapou os ouvidos na intenção de não me ouvir, mas ela sabe que na verdade eu vivo dentro de sua mente.
— Você é que sabe. Sabes do esforço que terás que fazer. Mas, antes disso, que tal se satisfazer mais um pouco? Sei que comeu mais que o normal nesse almoço... talvez seria melhor colocar um pouco disso para fora. – disse. Ela levantou o rosto, me olhou e eu a arrastei para o banheiro.

Esses 39 quilos andam me incomodando. Como ela pode querer fazer algum tipo de tratamento mesmo estando tão gorda assim? Empurro-a na privada, faço-a vomitar tudo o que tiver em seu estômago. Pego alguns remédios, dou em sua boca, um pouco de água da pia e ela se sente novamente bem. Ligo o chuveiro, ajudo-a a tomar banho e coloco-a para dormir. Sinto que posso ter forçado a barra para ela hoje, mas é o necessário. Não quero que ela volte a falar com ninguém como antigamente. Não quero aquela gordura de antes. Resolvo desaparece por alguns instantes.

Ao longo da noite sinto alguém me chamar, sussurrar o meu nome. É ela. Parada cardíaca. Paro na porta, vejo os médicos andando com ela por cima de uma maca. Nem na hora do sofrimento ela me deixa em paz. Olho para ela com um certo repugno. Toda marcada com gilete, facas, seringas. Gorda, olheiras profundas e cabelo tão desidratado que um simples pente arranca fios e mais fios. Saem do quarto e ela me encara. Apesar de ter perdido o brilho, seus olhos continuam profundos. E saltados do rosto. Sua magreza é encantadora em certas horas.

Acompanho-a até o hospital. Vejo sua mãe e seu pai na sala de espera, aguardando alguma notícia de sua tão querida filha. Eu não sei se ela será capaz de suportar mais essa. As recaídas têm aumentado ao longo das semanas. Assim que o quarto onde ela está fica vazio, entro.

— Ana, você veio me salvar? Eu não agüento essa dor dentro de mim, Ana. Por favor, me ajude. Tire-me daqui. – ela diz docemente, com sua voz falhando em certas sílabas e suas veias pulsando em seu pescoço pelo esforço que faz para falar. Eu solto um sorriso sarcástico.
— Isso é um leve gosto do que você me causou. Disse que iria fazer um tratamento? Está aí o seu tratamento. – respondi.
— Ana, porque você está sendo tão cruel? Eu pens... pensei que você gostava de mim. – as lágrimas começaram a rolar de seu rosto lentamente. Eu ri.
— Gostar? Eu gosto dos seus ossos, não de você. Já não é de hoje que noto suas falhas, seu desinteresse em vomitar. Tens diminuído o número de laxantes. Acha isso bom? Acha que ficaria por isso mesmo? Você me abandona para fazer um tratamento? – fui me aproximando, apenas deixando nossos rostos mais próximos.
— Você está me assustando, Ana. Onde está minha amiga? Ana, não, Ana, por favor... Por que você está pegando o meu travesseiro? – ela começou a bater as pernas. Uma pena estar presa nesse momento.
— Eu não preciso mais de você. Desculpe-me. – tapei seu rosto. Ela agonizou, mas em poucos instantes eu pude ouvir o doce e intenso som do aparelho apitando sua morte.

Saí do quarto. Caminhei pelo corredor e observei os médicos indo até seu leito, chamando seus pais que já estavam em prantos. Ela não tinha mais salvação. Fiz o que foi preciso ser feito. Fui até uma máquina de chocolates e peguei um para mim. Sinto em confessar que não senti nenhuma pena. Eu pressiono a ferida, mas, ainda bem, não dói nem um pouco em mim.

E, triunfante, vou atrás de uma nova amiga.

"Este blog me faz refletir!"


Falar dez coisas sobre mim.

1. Preguiça é um dos pecados capitais mais presentes em minha vida. Posso estar com a maior disposição possível: sempre vai aparecer algo que me desanimará.
2. Repentinamente me bateu uma certa paixão por algumas músicas indies. Imogen Heap e Florence and The Machine tem sido minhas últimas maiores execuções.
3. Acredito em astrologia. E não digo nesses horóscopos de jornais, não. Digo dos que você vai no site e fica sabendo até da sua quinta geração.
4. Eu tenho um certo defeito de nutrir amizades e paixões virtuais. Pena que geralmente ficam apenas no computador e eu percebo que o contato pessoal é bem melhor.
5. Tenho interesse por pessoas complicadas e problemáticas. Apesar de parecer bem clichê e apesar de eu ter um certo receio em falar com elas, gosto da forma diferente de agir e de pensar das mesmas.
6. Acho que assim como todo mundo, alimento paixões platônicas por cantores, atores e até mesmo pessoas que já tive pouca conversa mas que me encantaram de uma forma imensa.
7. Sou reclusa. Ou você é meu amigo a ponto de me dar liberdade pra te fazer rir, ou você não passa de uma companhia pra passar o tempo com o silêncio.
8. Minha convivência com minha mãe está longe de ser uma das melhores, mas só de pensar em perde-la um aperto no coração aparece e me causa um sofrimento imenso.
9. Escrevo corretamente nos textos e na maioria dos tweets, mas que me conhece realmente no MSN sabe que lá não uso o português correto. Perdoem-me.
10. Se eu pudesse não seria nem um pingo do que eu sou. Gostaria de ser uma pessoa diferente qualquer dia desses só para ver se é mais divertido.

Indicar dez blogs ao selo.


Tomei a liberdade de colocar mais dois na lista dos dez: Sonhos Interrompidos e Desolation Hall.

O jogo é basicamente é isso e agora terei o árduo trabalho de avisar a todos eles que ganharam um selo no meu blog.

Lembrando que quem me indicou foi a linda, tão linda da @pequenatiss, no seu blog Remember. Meus agradecimentos a ti. <3

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Diga tchau e vá.


Eu me sento na segunda cadeira da fileira do meio. Olho atentamente pro quadro e tento absorver cada palavra que ele diz, mas me concentrando na matéria. É meio difícil não olhar pros olhos dele que tanto piscam, para as mãos que gesticulam e pro sorriso de canto que ele dá talvez pelo prazer de estar dando aula. Nesse momento está dizendo sobre como as palavras são criadas e ao mesmo tempo tentando controlar a bagunça da sala. Vez ou outra olha para mim, mas tenta não manter muito tempo os nossos olhares fixos e o porquê eu não sei.

Ele me deixa envergonhada. Minhas pernas tremem, minha mão sua, começo a gaguejar e um sangue frio percorre minha barriga quando eu estou perto dele. Não sei se já percebeu, mas minha voz fica incrivelmente doce ao dirigir a palavra a ele. Pelas minhas notas eu sou a aluna mais aplicada na matéria e isso meio que me deixa orgulhosa, apesar dos ínfimos minutos que perco admirando aqueles cabelos negros desgrenhados e esses olhos de quem está desinteressado mas ao mesmo tempo prestando a atenção.

Falta apenas um minuto pro horário acabar. Bato minha caneta na mesa rezando para que esses eternos 60 segundos terminem e eu possa ir para casa para pensar no professor tranqüilamente. Eu mantenho essa paixão platônica desde o início do ano. Às vezes ele me chama para conversar particularmente, conferir se eu aprendi corretamente a matéria. Mas nada mais que isso, felizmente. Ele já deve ter notado essa minha obsessão por ele, todo o meu conhecimento sobre a vida dele. Sou uma verdadeira stalker.

E o sinal toca. Levanto-me, começo a andar tranqüilamente até a porta com o meu fichário por dentro dos meus braços cruzados. Aparentemente sou uma das últimas a sair da sala, até que o ouço dizer o meu nome. Respiro, respiro, respiro. Giro oitenta graus e o encaro. Ele está sorrindo, um sorriso sem malicia, mas com alguma intenção.

— Aproxime-se. Que vergonha é essa? – a voz dele teve impacto nos meus ouvidos alguns segundos depois. Aproximei-me. Fiquei a meio palmo longe dele. Mais um pouco e eu podia sentir sua respiração na minha face, já que ele estava sentado de uma certa forma que o deixava do meu tamanho.
— Sim, pro... fessor? – gaguejei ao dizer. Tentava desviar o olhar e observar os livros que ele mantinha atrás da mesa dele, mas constantemente nossos olhares se cruzavam.
— Como você está bonita, Junie. – ele disse, sorrindo e colocando uma mecha de meu cabelo levemente grudada ao suor do meu rosto atrás da minha orelha. Ruborizei. Quis me enfiar em algum buraco no chão e não sair até que ele se retirasse da sala.
— O... obri-brigada. – soltei uma palavra pequena e totalmente difícil pro momento. Ele colocou o rosto perto do meu.
— Você sabia que há um bom tempo venho observado seu comportamento em relação a mim? – silêncio.
— Não. – despejei.
— Pois eu notei. E venho admirando isso. Essa sua obsessão por mim, por saber aonde eu vou, com quem vou, onde moro, onde como, o que como, o que respiro. – ele foi dizendo de uma forma sutil enquanto levantava o meu rosto – Você é uma das minhas melhores alunas, Junie. Isso é como pontos extras para você. – a boca dele estava a um centímetro da minha. Eu senti seu hálito de menta e cigarro. Bambeei. Pedi a Deus força para me manter em pé.

Ele me selou. Um selinho molhado, demorado, que me fez levantar as mãos involuntariamente e colocá-las em volta do pescoço branco e cheio de veias saltadas. Começamos um beijo. Ele introduzia lentamente sua língua e roçava-a na minha, me fazendo eu me soltar aos poucos. Alisei seu cabelo, senti a maciez, aproximei o meu corpo e fui abraçando-o enquanto sentia o gosto maravilhoso que ele possuía. Fui parando aos poucos, ainda com os olhos fechados, colocando a minha testa contra a dele, apenas sentido nossa respiração ofegante e o bombear do meu coração. Provavelmente ele escutava também. Resolvi abrir os olhos e olhar pr’aquele olhar que tanto me encantava. Parecia um sonho.

Ao levantar minhas pupilas lentamente, comecei a ouvir uma voz. Uma voz que me gritava, me chamava:

“Venha, Junie, está na hora. O almoço está pronto, você dormiu demais!”.

Acordei.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

É claro, porque não?


Eu considero a primavera como a estação mais bonita que há. Faz-me aproveitar mais o dia, sair de casa, ler mais livros, sentir o cheiro das flores que tanto me fascina e socializar mais. E foi o que eu resolvi fazer hoje: sair de casa.

Levantei, lavei meu rosto, escovei os dentes, fui comer meu cereal com leite. O de sempre, nada muito novo. Tomei um banho rápido, peguei o livro que eu estava lendo e saí sem compromisso, apenas para admirar a paisagem que se forma nessa época e ver pessoas andando com suas roupas floridas por aí. Cheguei numa pequena praça que há na cidade, me sentei no banco de um modo confortável e me prostei a ler. O livro estava me entretendo, mas não a ponto de me fazer não olhar para as sorridentes pessoas que passavam em minha frente.

— Eu posso me sentar ao teu lado? — ouvi uma voz avelulada, meiga e singela dizer. Um arrepio percorreu o meu corpo chegando à minha face e me fazendo acordar para a realidade. Levantei o meu rosto e a encarei.
— É claro, porque não? — dei o meu melhor sorriso. Não que eu tenha um sorriso bonito, mas particularmente é a característica que mais atrai as pessoas.
— Obrigada. — disse meio envergonhada. Observei-a sentar-se, arrumar sua saia e colocar o cabelo atrás da orelha. Estava querendo um pouco de paz e calma para ler, assim como eu.

Não proferimos mais nenhuma palavra, mas apenas ter a companhia dela ao meu lado me causava uma sensação boa, tão boa que chega a ser indescritível. Na verdade indescritível mesmo é uma simples pessoa sentar ao meu lado e emanar sentimentos bons. Isso é raro hoje em dia.

No impulso, convidei-a para tomar um café na minha lanchonete preferida que era logo ali. Lugar para gente conhecida e que também quer silêncio, nada mais que murmurinhos e interação entre leitores. Por incrível que pareça ela não hesitou e disse sim. Acho que foi pelo impulso. Fechei meu livro e fui guiando-a até o lugar.

Chegado ao nosso destino, escolhi a minha mesa habitual e comecei a papear com ela. Pedi meu café forte e ela pediu o mesmo. Contou da rotina dela, dos amigos, dos pais e da freqüência que ela vinha na cidade. É, o que é bom é impossível demais para mim. Ela não morava aqui e estava apenas de passagem. Enquanto contava sobre a vida dela eu observava a maneira doce de como os lábios dela se mexiam, de como os cílios pretos e grandes batiam contra a parte inferior do olho e voltavam. O sorriso de lado que ela fazia me impressionava.

Tentei dar o melhor do meu charme até a hora de nos despedirmos. Levei-a até o ponto e esperei um táxi chegar. Aproveitei para entregar o livro que eu estava lendo caso não nos vêssemos mais e ela fez o mesmo. Mas por estranho que isso possa parecer eu tinha a leve impressão de que iríamos nos ver no outro dia por coincidência, no mesmo local.

Fui para casa saltitante. Há tempos não sentia algo como isso. Dormi pensando nela e acordei cedo na intenção de ir pro local em que nos encontramos. A imagem dos cabelos ruivos cacheados e brilhantes dela batendo contra as costas não saiu da minha mente. O cheiro também era maravilhoso e eu tenho certeza que era o cheiro da pele, não de um perfume qualquer. Ela era realmente especial, ou talvez eu apenas tenha preferido ver o que há de especial nela, não ignorado.

Levantei-me, fiz o mesmo do dia passado e fui. Com o livro dela, agora, começando a ler as primeiras páginas e rindo das anotações bobas que ela fez em alguns capítulos. Além de linda é engraçada. Sentei-me no banco e esperei. Esperar não é algo que me agrada, mas a cada minuto que se passava a ansiedade aumentava.

Aumentou a toa. Esperei até à noite e nada. Olhei para as pessoas que já não estavam tão sorridentes mais e nem as flores tinham a beleza de ontem. Talvez seja o meu mau humor piorando as coisas. Ansiei demais por algo que eu devia ter suposto que não iria acontecer. Mas não vê-la novamente não foi motivo para tirá-la da minha mente. Todos os dias em que vou nessa praça me lembro do modo como ela me abordou e de como me fez rir na lanchonete. E as chances de vê-la novamente não eram tão ínfimas assim. Talvez ela pudesse voltar qualquer dia desses e me encontrar na mesma praça, com o livro dela, toda envergonhada, disposta a tomar um café e, quem sabe, até mesmo comer alguns biscoitos. É claro, porque não?

sábado, 8 de janeiro de 2011

The devil is so lovely.


Odeio essa merda de escola, esses merdas de “amigos”, essas merdas de matérias. Ninguém sabe, ninguém valoriza e ninguém percebe que eu sei tudo o que eles passam aqui. Palavra por palavra, sou capaz até de corrigir qualquer um que ouse dar algum palpite sobre a matéria. É tão cansativo ter que levantar cedo todos os dias para ter que olhar para as mesmas caras mal lavadas, para as mesmas falsidades, pros mesmos sorrisos meigos, pros mesmos apelidos que insistem em me dar.

Eu nunca fui normal. Meus pais me odeiam por isso. Gravidez indesejada, vim ao mundo para perturbar. Eu tenho apenas dez anos e uma mente diabólica. Minha sala tem trinta e três alunos e eu posso fazer para cada um uma morte lenta e dolorosa, sofrida, sangrenta. Dizem que eu tenho distúrbios. Os problemáticos são eles que colocam uma máscara para sair de casa.

Na escola existem três tipos de pessoas: os burros que usam exercícios físicos para esconder a burrice, os inteligentes que no fundo criticam todos e eu. Apenas eu. Não há alguém para me acompanhar nessa jornada além dele. Às vezes fico pensando se eu vou morrer apenas com ele e só de ter esse pensamento já começo a gostar da idéia. Não nasci para conviver com humanos e já com pouca idade tenho ciência disso.
Ando sozinha no meu canto, faço desenhos ao lado das folhas e tenho a minha própria comida, comprada em uma padaria qualquer. Odeio depender dos meus pais e só recorro a eles para pedir algo para a escola, o que eu também acho um saco. Minha aparência não é o meu forte e as pessoas costumam me dar apelidos relacionados à feiura ou à minha cara de rabugenta. Mas ao menos sou eu quem os intimida com o olhar. Acho que é por isso que ninguém ousa ficar na minha frente.

Minto, finjo, forço, engano. Tudo para sobreviver, para não ter que lidar com questionamentos. Nos quais eu também sou boa: consigo fugir de perguntas inadequadas com uma facilidade incrível. Eu sou especial. Não aquele especial que você olha e acha fofo, único. Quem olha para mim vê uma garota anti-social e entediante. Mas eu sou mais que isso. E ele sabe. Ele me ensina. Ele me ampara e reconhece o que eu sou.

Não vou dizer como o conheci, isso não importa. Só sei que por meio de subliminaridades ele se comunica comigo e me instrui. Ele disse que eu estou certa de ser assim e eu também não me incomodo nem um pouco de desejar a morte alheia. Ele é quente e me motiva a continuar nesse mundo. Ele disse que um dia eu terei a oportunidade de vê-lo. Anseio por esse dia mais que qualquer coisa. Uma vez ele disse que eu sou o orgulho dele. Meu tão querido papai.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O barulho da droga pingando no chão.


Eu sinto um forte martelar em minha mente e posso ouvir a cada segundo o barulho do tic-tac do relógio aumentar. É como se tudo rodasse ao meu redor e a única coisa que eu precisasse fosse os meus remedinhos. Olhei pra onde eu estava, senti o cheiro forte da bebida e logo em frente, na mesa, uma xícara de café apenas com a borra ao fundo. Ele passou por aqui.

Eu me sinto machucada em algum lugar, só não sei dizer onde. Debrucei-me na mesa e pude perceber que haviam algumas gotas de sangue. Eu me machuquei, novamente. Não é como se eu pudesse me controlar, como se eu pudesse evitar isso. Eu apenas tento causar a dor física para tentar sanar a dor interna. E todas as vezes que ele vem aqui, faz o mesmo: joga o passado em minha face, diz o quanto eu acabei com a vida dele, me toma nos seus braços como se tivesse esquecido o que disse e depois vai embora. Deixando-me sozinha, com as minhas únicas companhias. As drogas.

É compulsivo. Cheiro uma, injeto outra. De uma vez, sem dó. Tento me levantar nesse momento e parece que o mundo está sobre minhas costas. A geladeira é logo ali e provavelmente há algo que possa me fazer ficar melhor. Vou até ela, tento abri-la e lá eu vejo uma garrafa de Jack Daniel’s que tanto me faz bem. Pego-a, abro-a e volto pra mesa agora com o maço de cigarros na mão. Abro, pego um, acendo o isqueiro e dou uma tragada. Forte, profunda e intensa. Assim como a minha dor mental.

Dou alguns goles, penso no quão inútil minha vida é. Uma escritora qualquer que ganha uma merda, vive sedentariamente e tem uma vida emocional mal resolvida. E fuma algumas drogas. Esse hábito eu peguei com ele. E é estranha essa minha necessidade por ele. Essa dor causada por não tê-lo aos meus braços. Essa dor por ter tirado-o da sua vida normal e bagunçado tudo o que havia de concreto pra ele.

Minha alegria costumava estar junta as coisas que ele dizia e as drogas que nós fumávamos. Tudo com ele era mais intenso e divertido. Fazíamos sexo enquanto ouvíamos nossas músicas preferidas e, às vezes, enlouquecíamos e quebrávamos tudo. Não que isso seja uma vida saudável, mas era a nossa vida. A minha vida com ele. Nós nunca nos permitíamos ficar tristes. Éramos o refúgio um do outro, um escape contra o mundo. Se nós estivéssemos a sós em uma casa, fazíamos dela o nosso paraíso. A nossa bolha que nos separava de todo mundo.

Perco-me em milhares de devaneios e lá vou eu tentar levantar novamente. Apoio-me na mesa, sinto milhares de corpos sobre o meu e vou pro meu quarto que é logo ali. Atiro-me na cama, sinto o cheiro dele e assim eu durmo, como faço todas as noites que ele vem – ou não – aqui: dopada, sangrando, imunda, inconseqüente, doendo e infimamente apaixonada por ele. Do jeito que eu não deveria estar.