sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Pense nos ossos, pressione mais fundo.


Ela tem que parar de comer, ela tem que parar de comer. Gorda. Baleia. E ainda insiste em dirigir a palavra à mãe. Eles não sabem o que dizem. Falam que o peso ideal para ela é, no mínimo, 50. Eu quero 32, só para início de conversa. Ela sabe que precisa de mim. Eu sou a única amiga, a única que demonstra o mínimo de afeto por ela. Já perdeu amigos, pais, anos de escola, carisma. Perder mais alguns quilos não a faria mal. E é aí que ela me chama.

— Ana... Ana? Você está aí? – eu não sei como ainda agüento essa voz irritante. Apareço. Ela me vê como uma garota loira, de 15 anos assim como ela, com a bochecha rosada e sem nenhum defeito, sem um pingo de gordura.
— O que é? Quer vomitar? Eu estou aqui. – falo com uma voz enfadonha. Confesso que às vezes me canso de ficar tendo que carregá-la ao banheiro e segurar sua cabeça para não ir junto com o vômito.
— Eu conversei com minha mãe. Estou disposta a fazer um tratamento intensivo para terminar com isso tudo. O que você acha? – ela disse. Engoli seco, respirei fundo e me segurei para não dar um tapa em sua cara.
— Por que pensas em fazer isso? Eu não estou te fazendo bem? Você não está gostando do seu progresso – apesar de sempre dar uma escapada e comer todos aqueles doces que eu disse para não comer? – curta, direta e grossa. Parece que só assim ela me escuta.
— Mas, Ana, eu quero melhor...
— Não quer melhorar. Você é uma gorda. Olhe para o espelho, Janet, veja como sua face está. – pego um espelho qualquer e a mostro. Ela vê um rosto arredondado e cheio de imperfeições. Eu vejo apenas ossos. É assim que eu gosto.
— Pare, pare, pare, por favor! – ela se segurou para não gritar mais alto. Tapou os ouvidos na intenção de não me ouvir, mas ela sabe que na verdade eu vivo dentro de sua mente.
— Você é que sabe. Sabes do esforço que terás que fazer. Mas, antes disso, que tal se satisfazer mais um pouco? Sei que comeu mais que o normal nesse almoço... talvez seria melhor colocar um pouco disso para fora. – disse. Ela levantou o rosto, me olhou e eu a arrastei para o banheiro.

Esses 39 quilos andam me incomodando. Como ela pode querer fazer algum tipo de tratamento mesmo estando tão gorda assim? Empurro-a na privada, faço-a vomitar tudo o que tiver em seu estômago. Pego alguns remédios, dou em sua boca, um pouco de água da pia e ela se sente novamente bem. Ligo o chuveiro, ajudo-a a tomar banho e coloco-a para dormir. Sinto que posso ter forçado a barra para ela hoje, mas é o necessário. Não quero que ela volte a falar com ninguém como antigamente. Não quero aquela gordura de antes. Resolvo desaparece por alguns instantes.

Ao longo da noite sinto alguém me chamar, sussurrar o meu nome. É ela. Parada cardíaca. Paro na porta, vejo os médicos andando com ela por cima de uma maca. Nem na hora do sofrimento ela me deixa em paz. Olho para ela com um certo repugno. Toda marcada com gilete, facas, seringas. Gorda, olheiras profundas e cabelo tão desidratado que um simples pente arranca fios e mais fios. Saem do quarto e ela me encara. Apesar de ter perdido o brilho, seus olhos continuam profundos. E saltados do rosto. Sua magreza é encantadora em certas horas.

Acompanho-a até o hospital. Vejo sua mãe e seu pai na sala de espera, aguardando alguma notícia de sua tão querida filha. Eu não sei se ela será capaz de suportar mais essa. As recaídas têm aumentado ao longo das semanas. Assim que o quarto onde ela está fica vazio, entro.

— Ana, você veio me salvar? Eu não agüento essa dor dentro de mim, Ana. Por favor, me ajude. Tire-me daqui. – ela diz docemente, com sua voz falhando em certas sílabas e suas veias pulsando em seu pescoço pelo esforço que faz para falar. Eu solto um sorriso sarcástico.
— Isso é um leve gosto do que você me causou. Disse que iria fazer um tratamento? Está aí o seu tratamento. – respondi.
— Ana, porque você está sendo tão cruel? Eu pens... pensei que você gostava de mim. – as lágrimas começaram a rolar de seu rosto lentamente. Eu ri.
— Gostar? Eu gosto dos seus ossos, não de você. Já não é de hoje que noto suas falhas, seu desinteresse em vomitar. Tens diminuído o número de laxantes. Acha isso bom? Acha que ficaria por isso mesmo? Você me abandona para fazer um tratamento? – fui me aproximando, apenas deixando nossos rostos mais próximos.
— Você está me assustando, Ana. Onde está minha amiga? Ana, não, Ana, por favor... Por que você está pegando o meu travesseiro? – ela começou a bater as pernas. Uma pena estar presa nesse momento.
— Eu não preciso mais de você. Desculpe-me. – tapei seu rosto. Ela agonizou, mas em poucos instantes eu pude ouvir o doce e intenso som do aparelho apitando sua morte.

Saí do quarto. Caminhei pelo corredor e observei os médicos indo até seu leito, chamando seus pais que já estavam em prantos. Ela não tinha mais salvação. Fiz o que foi preciso ser feito. Fui até uma máquina de chocolates e peguei um para mim. Sinto em confessar que não senti nenhuma pena. Eu pressiono a ferida, mas, ainda bem, não dói nem um pouco em mim.

E, triunfante, vou atrás de uma nova amiga.

14 comentários:

  1. Adorei a forma como você tocou em um assunto tão delicado. Parabéns, você me surpreendeu de novo. Seus textos me encantam pelo ponto de vista que você assume em cada um deles. Obrigada, Brenda. Te amo.

    ResponderExcluir
  2. Eu já falei que você é minha escritora favorita atualmente? É, acho que sim, mas não custa repetir, né.
    Quando é que sai o teu primeiro livro hein?
    Porque esse texto seria um ótimo auto ajuda, serviu pra mim pelo menos -hm

    um beijo

    ResponderExcluir
  3. Continuo achando seu talento pra escrever incrível.

    ResponderExcluir
  4. nossa =O amei parabéns, você tem muito talento pra isso hihi continue assim.

    ResponderExcluir
  5. Ontem mesmo eu estava assistindo um programa que falava sobre essa história de "Ana e Mia", cada loucura...
    Mas, enfim, adorei esse seu texto... De verdade.

    ResponderExcluir
  6. Brenda, posso dizer? Genial. Simplesmente genial. Foi uma forma muito interessante de abranger um assunto tão delicado, polêmico e quase comum hoje em dia. Juntar a insegurança da maioria das adolescentes em relação a seus corpos com a falta de confiança na maioria dos amigos, ou a decepção com aqueles a quem nos entregamos a ponto de criar alguma dependência foi quase um tapa na cara de qualquer um. No bom sentido, digo. Porque são dores que, hoje, existem na cabeça da maioria dos adolescentes (não só nas mulheres). E realmente, tens um talento enorme. Espero pelo dia que lançares um livro, ok?

    ResponderExcluir
  7. Sabe qual a sensação que eu tive ao ler o seu texto? Perguntei a mim mesma porque eu não tinha o escrito ainda. Trataste de um assunto tão sério, de uma forma tão leve, mas informativa e firme ao mesmo tempo que até me surpreendi. Não é um tema muito comum por aqui e acho que foi isso que causou a minha surpresa, mas foi uma surpresa boa. Eu adorei, adorei e adorei esse texto.
    Um beijo, @pequenatiss.

    ResponderExcluir
  8. assunto clichê mostrado de um ângulo totalmente diferente. mais uma vez, fiquei maravilhada com seu texto. Parabéns. Não é a toa que te levo como um modelo para mim, quando digo sobre escrita.

    ResponderExcluir
  9. Estou anestesiada. Muito bom, muito bom mesmo.

    ResponderExcluir
  10. Que maneira maravilhosa de mostrar a realidade por trás da anorexia/bulimia.
    Deve ser exatamente isso: Uma voz a mais. Um corpo além, algo que não se pode controlar.
    Rude. Insensível.
    É preciso muita força de vontade pra abrir os olhos. Creio eu que seu post vai conscientizar várias garotas que passam por situações parecidas; espero que não tenham o mesmo final. E que elas não ouçam essas vozes e que não enxerguem todo esse masoquismo.

    O amor a si mesmo precisa ser maior...




    Brilhante. Adoro a forma como você escreve.

    ResponderExcluir
  11. Nossa! Perfeito... Não sei nem como usar as palavras corretas.. Você é maravilhosa.

    ResponderExcluir